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As palavras e as armas

por Teresa Power, em 17.01.15

Hora de aula de Inglês com a turma do Curso Vocacional.

- Professora, trouxe um trabalho sobre a família para mostrar - Diz-me uma menina, aos saltinhos de excitação - Quer ver? Levei quatro horas a fazer! Quatro horas!

Pego na cartolina que me mostra. Vejo um conjunto de fotografias grandes, representando-a a ela em várias idades e os dois irmãos mais novos. A um canto, a fotografia da mãe. Por cima, algumas palavras em inglês: "My mother, my brothers, me". 

- Muito bem! Não tens fotos do teu pai?

- Eu não tenho pai. Quer dizer, se tenho não sei quem ele é.

- Ah! E o teu padrasto, o pai dos teus irmãos?

- Esse está na prisão. Sabe, professora, ele está na prisão por causa de mim.

- ?

- Ele fez-me uma coisa quando eu tinha dez anos. Eu tive de levar uma transfusão de sangue, e ele foi para a prisão. E sabe, o meu pai fez o mesmo à minha mãe, e é por isso que eu nasci.

- Compreendo. Queres apresentar o teu trabalho à turma?

- Tenho vergonha!

Ajudo-a a apresentar o trabalho. No meio do barulho e da confusão geral, alguns escutam.

- Quem quer ser o próximo a fazer um trabalho sobre a família? - Pergunto.

- Nem pense, professora! Eu do meu pai nem quero ouvir falar!

- E porquê?

- A professora chamaria pai a um homem que era capaz de o trancar num quarto durante dois dias seguidos, sem comer nem beber? E eu só com quatro anos? Ele merecia uma bala na cabeça! Se eu o apanhasse hoje diante de mim, depois de tudo o que fez à minha mãe e a nós, mandava-lhe um tiro na cabeça, pode crer!

- Isso não é nada. Havias de ver o meu pai!

Volto-me para ver quem fala agora.

- Que tem o teu pai?

- Não quero falar nisso.

- O meu saiu da casa quando eu tinha dois anos - Explica-me uma menina de sorriso aberto e longos cabelos louros, incapaz de estar quieta. - Nesse dia, contou-me a minha mãe, ele partiu-me um vaso na cabeça e eu fui parar ao hospital.

- Olha, o meu é um banana. - Um rapaz matulão e barulhento junta-se à conversa - Imagina que a namorada dele pos-me fora de casa! Disse que eu fazia muito barulho de manhã, nas férias, e ela queria dormir. 

- E onde vives então agora?

- Vivo em casa da minha avó. A minha mãe abandonou-me há alguns anos, e aquela parva da namorada do meu pai não gosta de mim. Eu também não gosto dela.

 

A conversa salta de aluno para aluno, e todos têm uma espada afiada para exibir. Tenho a cabeça a andar à roda. Uma vez por semana, procuro oferecer à turma alguns minutos de conversa, mas há dias em que se torna difícil suportar os seus desabafos, de tão doridos eles são. Enquanto escuto, sem que me aperceba, dois já começaram à luta, e a Márcia está a chorar porque alguém lhe roubou o estojo. Finalmente, a campaínha toca, e todos correm para o intervalo.

 

Ao arrumar os meus livros e trancar a porta da sala, dou comigo a meditar nas palavras de S. Paulo:

 

"Que tens tu que não tenhas recebido?" (1Cor 4, 7)

 

Na verdade, que diferença há entre mim e eles? Que fiz eu de extraordinário para ter tido a graça de nascer numa família cheia de amor? Que fizeram eles de errado para nascerem frutos de violações e crescerem no meio de todo o tipo de violência? De que me posso gabar ou envaidecer? Que tenho eu que não me tenha sido dado de graça, absolutamente de graça? 

É muito fácil envaidecermo-nos daquilo que somos, da nossa fé, das nossas boas obras. Fazemo-lo o tempo todo, mesmo sem nos darmos conta. Somos muito mais fariseus do que imaginamos! Eu, pelo menos... Mas quando chegarmos ao Céu, iremos ficar tão envergonhados! Então veremos as graças que foram derramadas sobre nós, o seu porquê, e a forma como as desperdiçámos dia a dia. 

O meu aluno mal sabe ler e tem dificuldade em entender o que eu explico. Eu recebi muito mais do que ele... Quem terá mais contas a dar a Deus - ele, se um dia meter uma bala na cabeça do pai, ou eu, que às vezes perco a paciência e me irrito contra o próximo, dizendo o que não devia? A questão tão pertinente da liberdade de expressão de novo à baila... Matar com armas é pecado; mas matar com palavras também. Jesus foi muito claro:

 

"Ouvistes o que foi dito aos antigos: 'Não matarás'.

Eu, porém, digo-vos: todo aquele que chamar louco a seu irmão terá de responder na geena de fogo."

(Mt 5, 21-22)

 

Quantas vezes por dia eu preciso de pedir perdão e de ser perdoada! Que seria de nós sem o perdão uns dos outros e de Deus?

Fm, perdoe-me por favor a falta de paciência e o sarcasmo no outro dia, num comentário que já apaguei...

gato e peluche 2.JPG

 

 

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publicado às 05:47


12 comentários

De Rita Teles a 19.01.2015 às 14:07

Olá... Nem tinha reparado na enorme conversação que corre no registo de impressões da Teresa!!! Que bom!

Sim, de tudo o que estes meninos protagonizam, falam, resmungam... gritam e muitas vezes disfarçam, sob camadas de riso e "leveza", ressalta a falta primordial de Amor. Amor no sentido luminoso de Deus...
A pobreza mudou, o nível de conforto material também, mas as nossas crianças, tal como os nosso adultos, continuam com falta crónica de Amor... E todo este horror e vazio decorre de não terem família, de não serem família, apesar de haver adultos com laços de sangue lá em casa...

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