Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Somos uma família católica, abençoada com seis filhos na Terra e um no Céu. Procuramos viver a fé com simplicidade e generosidade. Queremos partilhar com outras famílias a alegria de sermos Igreja Doméstica na grande família da Igreja Católica.
Ontem, sentada na cama antes de dormir, como costume, li alguns pontos da exortação pastoral A Alegria do Amor. E enquanto lia, o pensamento divagou e recordei-me de duas grandes lições de solidariedade das nossas famílias de origem que marcaram, uma a minha juventude, outra a juventude do Niall.
Era inverno em Castelo Branco, terra de muito frio. Sete e pouco da manhã. À porta, a minha mãe esperava um rapazito, que apareceu de boné enfiado e cabeça baixa. Na cozinha, nós as três, jovenzinhas, aguardavamos impacientes a visita, enquanto contemplávamos a mesa abundante que a minha mãe preparara: croissants, cereais, leite com chocolate, sumo de fruta. Ele chegou, sentou-se meio envergonhado, e comeu, comeu, comeu, um prato após o outro, como quem não comia há muito tempo... O ritual manteve-se até ao final do ano letivo. Quem era o rapazinho? Era um aluno da minha mãe, que faltava muito às aulas porque - descobriram as funcionárias - tinha fome a sério e, logo que a cantina abria para o almoço, não suportava nem mais uma aula. Numa altura em que a ajuda social escolar ainda não era um dado adquirido, a minha mãe decidiu resolver o assunto com as suas próprias mãos: de acordo com a mãe do menino, combinou que, de futuro, ele iria sair do autocarro na paragem anterior à escola, onde ficava a nossa casa, para o seu pequeno-almoço. E o menino deixou de ter fome - e de faltar às aulas. No ano seguinte, a minha mãe saiu Castelo Branco e deixou de poder dar o pequeno-almoço ao Hugo. Encontrou-o muitos anos depois, numa paragem de autocarro, quando ele, reconhecendo a sua antiga professora, foi ao seu encontro... Tinha crescido, era mecânico.
Irlanda, inverno também, mas certamente ainda mais frio. Lá fora levantara-se uma terrível tempestade. Era quase de noite, mas o pai do Niall ainda tinha que fazer na rua:
- Niall, Niall, veste o impermeável que temos de ir ao acampamento cigano - Disse-lhe ele.
Assim fizeram. O Niall recorda ainda hoje o pavor que sentiu dos cães do acampamento, que ladraram insistentemente à sua chegada. Mas nada deteve o seu pai, diretor da escola primária daquela zona da cidade, frequentada por muitas crianças ciganas. O chefe do acampamento recebeu o diretor com respeito.
- É perigoso ficarem aqui esta noite - Disse o pai do Niall, decidido - Venham, tragam as caravanas e os cavalos e podem ficar no recinto da escola, que tem algumas coberturas para vos proteger. Vou abrir-vos as portas da escola para usarem os chuveiros e a cozinha.
E foi assim que o acampamento cigano, com crianças e cavalos, foi transferido para o abrigo da escola primária, numa das noites mais terríveis do inverno irlandês.
Passaram os anos. O testemunho de solidariedade das nossas famílias, de que estes dois episódios são um pequeníssimo exemplo, continua a ecoar nos nossos corações e nas nossas vidas, e a impulsionar-nos a fazer o mesmo, aqui e agora. Tanto eu como o Niall, no seguimento do que vimos fazer em nossas casas, encaramos a vida profissional como missão, como testemunho cristão. Será que o conseguimos? As palavras de Jesus são claras:
"Tudo o que fizestes ao mais pequenino dos meus irmãos, a Mim o fizestes." (Mt 25, 40)
E que ponto da exortação pastoral foi este que me fez recuar tanto no tempo e contemplar demoradamente o testemunho recebido? Foi o ponto em que o Santo Padre relembra as famílias de que não se pode ser católico "separado" do mundo, fechado na sua casa sem relação com a sociedade circundante. Aqui fica então:
"Convém lembrar-nos também de que a adoção e a procriação não são as únicas maneiras de viver a fecundidade do amor. Mesmo a família com muitos filhos é chamada a deixar a sua marca na sociedade onde está inserida, desenvolvendo outras formas de fecundidade que são uma espécie de extensão do amor que a sustenta. As famílias cristãs não esqueçam que « a fé não nos tira do mundo, mas insere-nos mais profundamente nele. (...) A cada um de nós cabe um papel especial na preparação da vinda do Reino de Deus ». A família não deve imaginar-se como um recinto fechado, procurando proteger-se da sociedade. Não fica à espera, mas sai de si mesma à procura de solidariedade. Assim transforma-se num lugar de integração da pessoa com a sociedade e num ponto de união entre o público e o privado. Os cônjuges precisam de adquirir consciência clara e convicta dos seus deveres sociais." (181)
Assim seja!
Sexta-feira, oito de abril. O Niall está em viagem de trabalho há já dois dias, e hoje deverá fazer escala na Irlanda, para visitar os pais e os irmãos durante um fim-de-semana prolongado. Mas mesmo longe, nós precisamos de conversar. Aliás, conversas à distância não são nada de estranho para nós... Sentada ao computador, depois de deitar os mais novos, vou trocando mails com o meu marido.
- Já passaste os olhos pela exortação pastoral A Alegria do Amor? - Pergunto.
- Não. Já saiu?
- Hoje. Olha, vou enviar-ta em anexo. Descarreguei em Inglês e em Português do site do vaticano. Aqui vai!
Afasto-me do computador para fazer as minhas últimas tarefas do dia, e meia hora depois estou de volta - ao computador e ao diálogo com o Niall, que entretanto já adiantou a sua leitura.
- Leste o capítulo quatro? - Pergunta-me ele. - É fantástico! Um verdadeiro hino ao amor!
- Sim, li um bocadinho.
- Tão terno! Parece um avô carinhoso, e ao mesmo tempo, o mais exigente dos mestres...
- Preciso de ter o livro nas mãos. Quero poder lê-lo e relê-lo em todo o lugar, sublinhá-lo, marcá-lo...
- Assim que chegar a Portugal vou comprar-to em Aveiro, na livraria católica. Vamos vê-lo em conjunto.
- O capítulo quatro merece ser lido à hora de jantar, à volta da mesa, um número de cada vez.
- Vai dar muita conversa!
- Sim, vai certamente.
O Papa alerta, logo na introdução, para a dificuldade que terão na leitura aqueles que tiverem pressa, por isso decido ler devagar, número a número. O texto é tão atraente, que me deito tardíssimo, sem conseguir interromper a leitura... Do outro lado do computador, num hotel no aeroporto de Dublin, o Niall também fica a ler pela noite dentro. Despedimo-nos por entre parágrafos e citações.
O Niall passou três magníficos dias com a sua família de origem, na Irlanda. Os pais não cabiam em si de felizes, e todos os irmãos se reuniram para festejar este reencontro numa celebração tipicamente irlandesa, cheia de histórias e gargalhadas.
Segunda-feira à noite, sentados à volta da mesa da cozinha, iniciando a nossa refeição, aguardávamos ansiosos o regresso do Niall. Por fim, a porta abriu-se e ele entrou de rompante, causando a confusão de beijos, abraços, sopa entornada, presentes e fotografias dos primos, tios e avós guardadas no telemóvel. Perante tanta alegria, lembrei-me do início da Exortação Pastoral do Santo Padre:
"Agora entremos numa dessas casas, guiados pelo Salmista, através dum canto que ainda hoje se proclama nas liturgias nupciais quer judaica quer cristã:
« Felizes os que obedecem ao Senhor
e andam nos seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
os teus filhos serão como rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado o homem que obedece ao Senhor.»
(Sl 127/128)
Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a sua família sentada ao redor da mesa em dia de festa. No centro, encontramos o casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor." (nºs 8 e 9)
- É tão bom regressar a casa! - Dizia-me o Niall, à noite, já deitados nos braços um do outro. - Não importa o quão belas são as nossas viagens, não há nada mais belo que regressar.
Ficámos uns momentos em silêncio, depois ele continuou:
- Deve ser tão triste não se ser amado no seio da sua família! Marido e mulher que discutem com violência, palavras ofensivas, filhos que tratam os pais com desprezo, pais sem tempo para os filhos... Deve ser muito triste...
- Nós não nos damos conta do tesouro que guardamos em nossa casa - Respondi-lhe.
- Não há nada mais central para o ser humano que a família. De que adianta ter um emprego fantástico, um salário de luxo, uma mansão, férias e carros e tudo o que possamos imaginar, se não experimentarmos esta alegria e este amor ao fim do dia?
Suspirei, profundamente reconfortada nos braços do meu marido, e fiz mentalmente uma breve prece por todos os que não experimentam esta alegria. A Alegria do Amor... Sim, falar de família é acima de tudo falar da alegria do amor...
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.