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Somos uma família católica, abençoada com seis filhos na Terra e um no Céu. Procuramos viver a fé com simplicidade e generosidade. Queremos partilhar com outras famílias a alegria de sermos Igreja Doméstica na grande família da Igreja Católica.
- Meninos, tenho uma notícia para vos dar.
- Sim? Qual é?
- É sobre a vovó-mamã? - Os meus filhos tratam a minha avó, não por bisavó, mas por vovó-mamã, talvez por escutarem a avó a tratá-la por mãe.
- Sim, é sobre a vovó-mamã...
- Ela já está boa? Podemos ir visitá-la?
- Não vês que ela já não vai ficar boa, António? A vovó-mamã está quase a morrer, não é, mãe?
- A vovó-mamã já está com Jesus... Era isso que eu vos queria dizer.
- Já morreu? - O David quer ter a certeza.
- Sim, já morreu. Já está no céu!
- Então já está boa! Viva! Ah, deve ser tão bom estar no céu! - A Lúcia não esconde a sua alegria. Ela sabe o quanto a bisavó sofria nos últimos anos da sua vida, e também sabe, com uma certeza infantil, inocente e pura, que o céu é a maior felicidade que podemos experimentar.
- Quem me dera estar no céu agora, a brincar! Achas que a vovó-mamã já viu o Tomás?
- E vai poder pegar nele ao colo! Que sorte! Ena...
- E vai ver Jesus! E Nossa Senhora! Ah, ela deve estar tão feliz!
A conversa depressa se centra neste mistério imenso que é o céu, e que cá em casa é frequentemente motivo de belos sonhos. Há muito que a morte deixou de nos meter medo, e falamos sempre dela como da verdadeira Porta Santa, a Porta que nos lança na Vida.
- Bem, amanhã, dia 1 de março, vamos ao funeral - Interrompo.
- Funeral? Funeral? - A Sara quer saber do que falamos nós.
- Sim, Sara. Vamos fazer a última festa à vovó-mamã. Vamos rezar por ela, na missa, e depois acompanhá-la ao cemitério. Sabes, como o Tomás... Lembras-te do túmulo do Tomás, onde ficou guardado o seu corpo? A vovó-mamã também vai ter um túmulo assim. O corpo das pessoas é demasiado pesado para subir ao céu, por isso, Deus só leva a alma, e no céu dá-lhes um corpo novinho em folha, sem doenças, sem velhice, sem dores. O corpo da terra volta para a terra, aonde pertence.
- Ah, por isso é que não vemos os corpos por aí a voar!
- Claro. Seria uma grande confusão! Deus só leva as almas, e no céu tudo se arranja.
Os meninos não têm dificuldade em entender isto. Não custa, imaginar o espírito a elevar-se alto no céu, leve como as nuvens, alegre como os pássaros, azul como o horizonte... e voar até ao Coração de Deus.
Nessa noite, no terço, recordámos a vovó-mamã, pedimos ao Senhor que a acolhesse no seu Coração e agradecemos o dom que ela foi sempre na nossa vida. No dia seguinte, fui buscar os meninos à escola logo depois do almoço, e seguimos até Aveiro, rezando o terço no carro e preparando os cânticos para o funeral.
O dia estava luminoso, sereno e belo. Na missa, todos cantámos e tocámos, porque se havia coisa que a avó gostava, era da nossa música. Atentos, os meninos seguiram a belíssima homilia do Cónego António Assunção (o sacerdote da minha infância, testemunha do meu casamento, padrinho do Francisco, o mesmo sacerdote que sepultou o Tomás...), feita especialmente para que as crianças penetrassem um pouco no imenso mistério da eternidade.
Depois, serenos, dirigimo-nos ao cemitério. O azul do céu e o branco das lajes, o silêncio e a paz...
- A vovó-mamã vai ficar dentro daquela cova?
- Não, António. Já te esqueceste? É só o corpo que fica ali, até se desfazer em terra, em pó... Essa terra vai alimentar as plantas, fazer crescer as árvores, fazer brotar as flores, e o ciclo da vida continua. Entretanto, a alma da vovó-mamã já não está aqui, já está no céu, e Deus já lhe deu um corpo novo, sem rugas, sem fome, sem sede, sem doença, sem morte.
- Ah...
É preciso que os meninos vejam o caixão, é preciso que vejam a cova, a terra, a pedra fria. É preciso que vejam e que não desviem o olhar, e que não se distraiam com fábulas, e que não esqueçam... O mistério da morte é o mistério da vida. É preciso perder o medo à morte para perder o medo à vida.
Um a um, deitam uma última flor sobre a urna, e logo os coveiros a cobrem de terra.
Diante daquela urna imensa, vieram-me ao pensamento memórias de um tempo antigo... A minha infância, a minha juventude, os meus primeiros anos de casada, e a minha avó sempre presente, acompanhando cada alegria e cada dor com a sua ternura infinita e uma capacidade imensa de se esquecer de si. Recordei-me de cada cheiro e de cada sabor das refeições deliciosas com que sempre nos recebia, nas longas férias que passávamos juntos; e das camisolinhas de lã tricotadas com todo o carinho do mundo, primeiro para nós, as netas, depois para cada um dos bisnetos que iam chegando... Os anos passaram, e pouco a pouco, a minha avó foi perdendo a memória, a capacidade de se deslocar sozinha, as forças. Mas nunca perdeu o essencial: o seu imenso amor, o seu imenso respeito e a sua imensa gratidão por quem dela cuidava. A todos, mesmo sem os reconhecer, respondia com um "obrigada" educado e bem disposto. E nas suas mãos, as contas do terço iam passando lentamente...
Diante daquela cova e daquela terra, lamentei que os meus filhos não tenham conhecido a minha avó quando ela era nova e cheia de energia. Depois apercebi-me que a geração dos filhos dos meus filhos nem sequer recordará o seu nome. Que mistério! Como diz o salmista:
"Os dias dos seres humanos são como a erva;
brota como a flor do campo,
mas, quando sopra o vento sobre ela,
deixa de existir e não se conhece mais o seu lugar."
(Sl 102/103, 15-16)
Mas o mesmo salmo acrescenta:
"Mas o amor do Senhor é eterno para os que o temem,
para os que guardam a sua aliança
e se lembram de cumprir os seus preceitos."
(Sl 102/103, 17-18)
Diante de Deus, cada um de nós é sempre, sempre Presente. Os homens podem esquecer, mas o Senhor nunca esquece, porque nunca, por um instante sequer, existimos longe do seu olhar. Uma imensa alegria invade o meu coração, quando penso neste grande mistério. Sei que nenhum gesto de amor da minha avozinha ficará sem recompensa, mesmo aqueles gestos - especialmente aqueles gestos - que nunca lhe consegui agradecer.
No eterno Presente que é o Céu, só o amor é recompensado... E como diz S. João, falando de todos os cristãos que o são verdadeiramente, falando - também - da minha avó:
"Sabemos que passámos da morte à Vida porque amamos os irmãos." (1Jo 3, 14)
Ámen!
O dia fora longo e feliz. Depois de uma alegre manhã na praia, tínhamos almoçado em casa das duas avós - a vovó Mimé e a bisavó, que embora não nos reconheça, gosta de ver os meninos a brincar à sua volta. Por fim, tínhamos ainda tido bastante tempo para saltar no jardim.
Hora do banho. O António está sentado na banheira, e eu esfrego-o vigorosamente, deixando a água que se acumula no fundo bastante suja. Verão é também tempo de muita sujidade, penso eu.
Interrompendo os meus pensamentos, o António faz-me uma pergunta:
- Mamã, quando fores velhinha sou eu que te dou banho?
- Banho? A mim?
- Sim. A vovó mamã - é assim que os nossos filhos tratam a bisavó, talvez por escutarem a avó tratá-la por mãe - não toma banho sozinha, pois não? Um dia, eu vou dar-te banho com tu me dás agora a mim!
Sorrio, e continuo a esfregar o meu filho. Espero sinceramente não vir a precisar da ajuda do António, mas se Deus achar de outra forma, espero que o António, e todos os meus outros filhos, sejam capazes disso e de muito mais! E olhem que não estou a pensar no meu bem estar pessoal na terceira idade: estou a pensar na sua capacidade de amar, porque como dizia a Madre Teresa, amar é dar até doer...
"A glória de uma pessoa vem da honra de seu pai, e é uma desonra para os filhos a mãe desprezada. Filho, ampara teu pai na velhice e não lhe causes desgosto enquanto vive. Ainda que perca a razão, sê tolerante e não o desprezes, tu, que estás em teu pleno vigor. Pois a compaixão para com teu pai não será esquecida e, em lugar dos pecados, terás os méritos aumentados. Quem abandona seu pai é como blasfemador, e é maldito do Senhor quem irrita sua mãe." (Ecl. 3, 11-16)
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