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Somos uma família católica, abençoada com seis filhos na Terra e um no Céu. Procuramos viver a fé com simplicidade e generosidade. Queremos partilhar com outras famílias a alegria de sermos Igreja Doméstica na grande família da Igreja Católica.
Sexta-feira, oito de abril. O Niall está em viagem de trabalho há já dois dias, e hoje deverá fazer escala na Irlanda, para visitar os pais e os irmãos durante um fim-de-semana prolongado. Mas mesmo longe, nós precisamos de conversar. Aliás, conversas à distância não são nada de estranho para nós... Sentada ao computador, depois de deitar os mais novos, vou trocando mails com o meu marido.
- Já passaste os olhos pela exortação pastoral A Alegria do Amor? - Pergunto.
- Não. Já saiu?
- Hoje. Olha, vou enviar-ta em anexo. Descarreguei em Inglês e em Português do site do vaticano. Aqui vai!
Afasto-me do computador para fazer as minhas últimas tarefas do dia, e meia hora depois estou de volta - ao computador e ao diálogo com o Niall, que entretanto já adiantou a sua leitura.
- Leste o capítulo quatro? - Pergunta-me ele. - É fantástico! Um verdadeiro hino ao amor!
- Sim, li um bocadinho.
- Tão terno! Parece um avô carinhoso, e ao mesmo tempo, o mais exigente dos mestres...
- Preciso de ter o livro nas mãos. Quero poder lê-lo e relê-lo em todo o lugar, sublinhá-lo, marcá-lo...
- Assim que chegar a Portugal vou comprar-to em Aveiro, na livraria católica. Vamos vê-lo em conjunto.
- O capítulo quatro merece ser lido à hora de jantar, à volta da mesa, um número de cada vez.
- Vai dar muita conversa!
- Sim, vai certamente.
O Papa alerta, logo na introdução, para a dificuldade que terão na leitura aqueles que tiverem pressa, por isso decido ler devagar, número a número. O texto é tão atraente, que me deito tardíssimo, sem conseguir interromper a leitura... Do outro lado do computador, num hotel no aeroporto de Dublin, o Niall também fica a ler pela noite dentro. Despedimo-nos por entre parágrafos e citações.
O Niall passou três magníficos dias com a sua família de origem, na Irlanda. Os pais não cabiam em si de felizes, e todos os irmãos se reuniram para festejar este reencontro numa celebração tipicamente irlandesa, cheia de histórias e gargalhadas.
Segunda-feira à noite, sentados à volta da mesa da cozinha, iniciando a nossa refeição, aguardávamos ansiosos o regresso do Niall. Por fim, a porta abriu-se e ele entrou de rompante, causando a confusão de beijos, abraços, sopa entornada, presentes e fotografias dos primos, tios e avós guardadas no telemóvel. Perante tanta alegria, lembrei-me do início da Exortação Pastoral do Santo Padre:
"Agora entremos numa dessas casas, guiados pelo Salmista, através dum canto que ainda hoje se proclama nas liturgias nupciais quer judaica quer cristã:
« Felizes os que obedecem ao Senhor
e andam nos seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
os teus filhos serão como rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado o homem que obedece ao Senhor.»
(Sl 127/128)
Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a sua família sentada ao redor da mesa em dia de festa. No centro, encontramos o casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor." (nºs 8 e 9)
- É tão bom regressar a casa! - Dizia-me o Niall, à noite, já deitados nos braços um do outro. - Não importa o quão belas são as nossas viagens, não há nada mais belo que regressar.
Ficámos uns momentos em silêncio, depois ele continuou:
- Deve ser tão triste não se ser amado no seio da sua família! Marido e mulher que discutem com violência, palavras ofensivas, filhos que tratam os pais com desprezo, pais sem tempo para os filhos... Deve ser muito triste...
- Nós não nos damos conta do tesouro que guardamos em nossa casa - Respondi-lhe.
- Não há nada mais central para o ser humano que a família. De que adianta ter um emprego fantástico, um salário de luxo, uma mansão, férias e carros e tudo o que possamos imaginar, se não experimentarmos esta alegria e este amor ao fim do dia?
Suspirei, profundamente reconfortada nos braços do meu marido, e fiz mentalmente uma breve prece por todos os que não experimentam esta alegria. A Alegria do Amor... Sim, falar de família é acima de tudo falar da alegria do amor...
- Niall, estive a fazer uma pesquisa na net sobre a Meriam Ibrahim. O livro que me ofereceste não conta senão os detalhes que já conhecia dela, e deixou-me bastante intrigada.
- E que descobriste tu? Adivinho que encontraste a resposta que procuravas. Anda, conta lá!
- Adivinhaste bem. Descobri que a Meriam está muito desgostosa com a pressa que todos têm em escrever sobre ela. Diz que não entende como é que jornalistas e produtores de cinema querem escrever e, inclusive, fazer um filme sobre a sua história, quando ela ainda a não contou...
- Não contou?
- Não. Ela diz que 75 por cento da história ainda está escondida no seu coração, e que portanto, quem escreve a história antes dela a contar, está a escrever baseado nos 25 por cento de informação que passou nos meios de comunicação social.
- Imagino... Imagino a dor que sente!
- A traição. Perceber que falam e escrevem do que não sabem para serem os primeiros a ganhar com a história... A jornalista que escreveu o livro que tu me ofereceste soube dar a volta à questão, porque essa jornalista não narra a história de Meriam Ibrahim, mas a sua própria participação em todo o processo de libertação. Mas Meriam insiste que tem o direito a contar a sua própria história.
- Tem toda a razão!
- Ela diz que no Sudão foi condenada à morte com base em falsas informações, sem nunca ter sido ouvida; e agora, nos E.U.A., sente-se de novo como que condenada à morte, ao ver livros e filmes surgirem sobre ela - sem nunca ter sido ouvida! É quase irónico...
Ficamos um bocado em silêncio. Depois o Niall continua:
- Sabes, Teresa, tudo isto faz-me pensar na forma como as pessoas falam umas das outras. Com que facilidade julgamos os outros a partir de informação que ouvimos, que lemos por alto, que outros inventaram e espalharam...
- Sim, é um perigo enorme. Tenho para mim que os pecados de maledicência e murmuração são dos pecados mais graves que podemos cometer. E tenho sempre muito receio de cair neles!
- É fácil cair neles. Quantas vezes, no meio de uma conversa, insinuamos alguma coisa sobre alguém, por meias palavras... O nosso interlocutor, por sua vez, irá contar essa nossa impressão a outra pessoa, e talvez use palavras que não usámos... Ás vezes basta uma troca de olhares, um sorriso malicioso, um acenar com a cabeça, e pecamos gravemente.
- A Palavra de Deus é muito clara. Quantas advertências, na Bíblia, contra a maledicência e a murmuração! S. Tiago dedica um capítulo inteiro da sua carta ao assunto. Nós costumamos pensar que os primeiros cristãos eram comunidades modelo, mas a única comunidade modelo foi a casa de Jesus, Maria e José. As primeiras comunidades tinham os seus problemas, e segundo S. Tiago, a maledicência era um deles.
- Tal como as nossas comunidades paroquiais hoje em dia... Em todos os tempos! É tão fácil falar dos que se expõem um bocadinho mais, dos que têm maior visibilidade... Jesus é muito paciente, mas deve ficar muito triste.
- Escuta o que diz S. Tiago:
"Vede como um pequeno fogo pode incendiar uma grande floresta! Assim também a língua é fogo, é um mundo de iniquidade; entre os nossos membros, é ela que contamina todo o corpo e, inflamada pelo inferno, incendeia o curso da nossa existência." (Tg 3, 5-6)
- Bem, a verdade é que nós próprios já fomos vítimas destas labaredas destruidoras... Uma pessoa acende um pequeno fósforo, e quando damos conta, o incêndio já não é controlável. Era bom se a vida tivesse, como os blogues, uma aplicação para "moderação de comentários"!
- Mas não tem. Não foi assim com Jesus também? Não foi Ele condenado à morte com base em falsos testemunhos? E traído de morte por um dos seus amigos?
- De facto, o discípulo não é maior que o Mestre... Meriam Ibrahim sobreviveu à forca, sobreviverá também a esta guerra de palavras, que tanto a procuram exaltar, como humilhar, tanto inventam para o mal, como para o bem. Vou continuar a esperar que conte a sua história, ela mesma, e nos maravilhe com o seu testemunho. Todos temos a aprender com ela.
- Aguardemos então pelo seu próprio livro!
- Olha, queres ver o vídeo que eu encontrei de uma entrevista com a Meriam? Ela é lindíssima, e as suas palavras são verdadeiramente tocantes. Explica na entrevista que a parte conhecida da sua história são apenas os últimos minutos... Diz que vai dedicar o resto da vida a ajudar cristãos perseguidos, e simplesmente a cumprir a vontade de Deus. Se Ele quiser, voltará ao Sudão. O sofrimento, diz ela, fortaleceu a sua fé em Jesus. Nunca se perguntou: "Porquê eu?" Sabe que a dor é um teste, e que Deus nunca, nunca nos deixa sós. E agora a sua vida é uma verdadeira missão. Vê! Vou mostrar-te...
Vejam vocês também connosco, ou leiam a reportagem aqui! O inglês utilizado é simples e acessível. Reconhecemos uma testemunha de Cristo quando nos cruzamos com ela. Meriam é, sem qualquer dúvida, uma testemunha de Cristo, luminosa e bela...
Cá em casa, estar de férias significa, entre muitas outras coisas, acordar cedo, às vezes mais cedo - e com muito mais vontade - do que em tempo de aulas. Quando vivíamos ao pé da praia, antes do Tomás morrer, costumávamos estar na areia pelas oito e meia. Nessa altura, havia quem brincasse connosco, dizendo que tínhamos as chaves da praia... Agora temos quarenta minutos de viagem diária a separar-nos do mar, mas mesmo assim, gostamos de chegar à praia entre as nove e as nove e meia, para contemplar as gaivotas que ainda saltitam na areia e a praia que se estende, solitária, à nossa frente. Ao meio-dia, quando a praia começa verdadeiramente a encher-se de gente, nós já estamos de regresso a casa, com a sensação de ter brincado, rido, saltado e nadado por um dia inteiro!
Mas não foi sempre assim. Quando nos casámos, o Niall e eu tivemos naturalmente de orquestrar hábitos e gostos, temperamentos e sonhos. E não foi tarefa fácil! Às diferenças naturais que existiam entre nós, havia ainda a juntar a diferença cultural - o Niall é irlandês - que era significativa. O nosso primeiro ano de casados foi talvez o mais difícil...
Como portuguesa, criada no interior e habituada ao calor, eu achava que a praia só era boa com muito sol. Como irlandês, habituado ao mau tempo e a baixas temperaturas, o Niall gostava de caminhar na areia contra o vento e de nadar à chuva. Ao fim-de-semana ou durante as férias, eu ficava na cama até depois das nove horas, enquanto o Niall se levantava de madrugada. Para mim, antes das nove horas, em férias, não valia a pena estar acordado, porque aqui no litoral está sempre fresco, pelo que a praia não seria uma experiência agradável. O Niall sentia-se frustrado. Para ele, o melhor do dia estava perdido.
Uma manhã de sábado, acordei com o seu chamar entusiasmado:
- Teresa, Teresa, levanta-te depressa, já passa das nove e tu prometeste que íamos passear à beira-mar!
Abri os olhos, estremunhada. Estava ainda cheia de sono. Seria possível ser tão tarde? Olhei para o meu relógio de pulso: nove e um quarto. Olhei para o relógio de parede: nove e um quarto. E quando cheguei à cozinha, olhei para o relógio no micro-ondas: nove e um quarto (nessa altura, nós não tínhamos ainda telemóvel). Tomei o pequeno-almoço à pressa, vesti-me e saímos para o prometido passeio. Cá fora, na rua, o vento fresco e o silêncio da manhã souberam-me deliciosamente bem. Quanta beleza! Entrámos no carro, e naturalmente olhei para o relógio: marcava sete da manhã.
- Niall, que se passa? O relógio do carro... Sete da manhã? Mas... O meu relógio...?
O Niall sorriu, triunfante, enquanto conduzia a caminho da praia.
- Enganei-te bem, não foi?
Não contive uma gargalhada:
- Tu deste-te ao trabalho de mudar todos os relógios lá de casa? Nem te esqueceste do micro-ondas...
- Sim, mudei os relógios todos. Não tinha outra forma de te convencer a vires fazer este passeio comigo. Vais ver que valeu a pena!
E valeu. Valeu tanto a pena, que nunca mais preferi a cama a um passeio pela madrugada...
Quem, como eu, já fez quarenta anos, recorda-se certamente da primeira telenovela brasileira difundida em Portugal, Gabriela Cravo e Canela, baseada no belíssimo romance de Jorge Amado. A música, cantada por Maria Bethânia, parece contudo ser o refrão de muitos casamentos fracassados: "Eu nasci assim, eu cresci assim, e sou mesmo assim, vou ser sempre assim..." Quanta gente recusa a mudança na sua vida! E quanta gente acaba por incorporar na sua vida, não as virtudes, mas os defeitos do conjuge, baixando os braços e desistindo do esforço necessário para que a mudança aconteça!
Quando olhamos para trás, quase dezanove anos depois do dia do nosso casamento, e procuramos o segredo que nos permitiu chegar até aqui com tamanha felicidade, encontramos um refrão contrário... No meio de muitos defeitos e muitos erros, o Niall e eu tivemos sempre uma virtude: a vontade de aprender com o outro o melhor que ele tem para dar, e de o incorporar na nossa vida conjunta. Os hábitos que hoje temos resultam deste desafio constante que fomos fazendo um ao outro a todos os níveis, e da forma como aceitámos ser desafiados, recusando o "vou ser sempre assim". Ao longo dos anos, o Niall adquiriu muitos dos meus melhores hábitos e eu adquiri muitos dos dele, e juntos esforçámo-nos por abandonar hábitos destrutivos e adquirir novos hábitos vencedores. Acordar cedo, para nós, é um deles!
"Ninguém põe um remendo de pano novo em roupa velha, porque o remendo puxa parte do tecido e o rasgão torna-se maior. Nem se deita vinho novo em odres velhos; de contrário, rompem-se os odres, derrama-se o vinho e estragam-se os odres. Mas deita-se o vinho novo em odres novos; e desta maneira, ambas as coisas se conservam." (Mt 9, 16-17)
- Niall, uma leitora assídua do blogue falou da sua dificuldade com a palavra "submissa" na Carta de S. Paulo, que citei no post de ontem.
- Tu também tens dificuldades com essa palavra!
- Não brinques! Agora a sério...
- Não lhe respondeste que as mulheres estão em vantagem? S. Paulo disse que as mulheres deviam ser submissas, mas acrescentou que os maridos deviam amá-las "como Cristo amou a Igreja." Ser submissa é mais fácil do que amar como Cristo amou a Igreja! S. Paulo exige muito de nós, pobres homens!
- Então e o que é isso de amar como Jesus amou?
- Bem, acho que é o contrário exactamente do "machista". Jesus disse:
"Eu não vim para ser servido, mas para servir." (Mt 20, 28)
Então - continuou o Niall - se eu quiser amar como Jesus, primeiro tenho de começar por servir! Chegar a casa, depois do trabalho, e sentar-me de pantufas em frente da televisão não é uma atitude de serviço. Para um marido amar como Jesus amou, é preciso arregaçar as mangas e trabalhar lado a lado com a sua mulher!
-E trazer-lhe um chocolate quando vai às compras... Há uns dias que não me trazes nenhum!...
-Claro, um chocolate... Bem, no limite, amar como Jesus amou é dar a vida. Jesus amou até ao fim, e um marido cristão tem de fazer o mesmo.
- Espero não precisar que morras por mim!
- Morro todos os dias... Tenho de morrer para a minha vontade todos os dias, a fim de te fazer feliz, não é? Pequenas coisas diárias que fazem a diferença!
- Sabes que o que estás a dizer vem no Livro de Tobias também? A mãe de Sara disse assim a Tobias, ao entregar-lhe a filha em casamento:
"Entrego a minha filha à tua guarda. Nunca a entristeças, durante os dias da tua vida!" (Tb 10, 13)
- S. Paulo não diz em lado nenhum que o marido é superior à esposa. S. José não era superior a Maria, e no entanto, era ele o chefe de família! Nossa Senhora obedeceu quando foi preciso levantar-se e levantar o Menino durante a noite para partir a toda a pressa para o exílio. Por sua vez, José deu a sua vida ao aceitar uma mulher grávida por esposa... Era o seu nome e a sua reputação que estavam para sempre destruídas!
-Sim, submissão, ou obediência, é afinal dar a vida... Porque quem obedece precisa de morrer para a sua vontade, precisa de dar a vida! Jesus pregou a obediência com toda a sua vida. Logo no início do evangelho de S. Lucas é-nos dito que
"Jesus (aos doze anos) desceu com os pais a Nazaré e era-lhes submisso." (Lc 2, 51)
- Extraordinário, o Filho de Deus submeter-Se aos homens!
- E quando chegou a hora da morte, no Jardim das Oliveiras, Jesus manifestou a sua obediência total a Deus:
"Pai, se for possível, afasta de Mim este cálice. No entanto, não se faça a Minha vontade, mas a Tua." (Lc 22, 42)
- O que S. Paulo nos diz afinal é que ambos, num casal cristão, precisam de dar a vida um pelo outro. O mundo aceita a ideia de um pai ou uma mãe dar a vida pelo filho - é um instinto natural -; mas S. Paulo diz-nos que o homem deve ser capaz de dar a vida pela mulher! Isto é um ensinamento radical no seu tempo, e continua a ser radical no nosso!
- Mas é a fonte da felicidade. Se todos os casais aderissem de coração ao ensinamento de S. Paulo, não havia necessidade de divórcio!
- Bem, o esforço tem de ser mútuo...
- Claro que sim. S. Paulo está a escrever para cristãos! Ser cristão é uma opção radical de vida; ou somos, ou não somos! E se somos, assumimos a nossa fé até ao fim. Um casal cristão é uma unidade:
"E os dois serão uma só carne." (Gen 2, 24)
- Amar como Jesus amou... Eis o grande segredo da felicidade...
(Crucifixo que temos sobre a nossa cama de casal)
Uma das nossas histórias preferidas é a colecção de livros Little House on the Prairie (Uma Casa na Pradaria), de Laura Ingalls Wilder. Os livros são pouco conhecidos em Portugal, mas a série televisiva é conhecida de toda a gente da minha geração. Embora a série seja bonita, os livros são infinitamente melhores, contando a história verdadeira de uma família de pioneiros americanos, vivendo uma vida cheia de risco e de amor na "fronteira" do território índio, no início do século XX.
Recém-casados, ao serão, o Niall e eu lemos em conjunto - sempre gostámos muito de ler em voz alta - os nove livros, um bocadinho de cada vez. Anos mais tarde, lemos os três ou quatro primeiros livros ao Francisco e à Clarinha. Em breve começaremos a lê-los ao David, e depois à Lúcia e aos manos mais novos. Às vezes rimos à gargalhada, às vezes choramos, mas nunca pousamos os livros sem nos sentirmos diferentes, mais corajosos e mais pacificados. A história da vida de Laura teve uma grande influência na forma como fomos criando as nossas tradições familiares e definindo os nossos ideais.
Um dos muitos pontos que nos fez sempre reflectir foi a forma como o pai e a mãe da Laura se relacionavam. As suas quatro filhas nunca assistiram a uma discussão entre eles! O carinho e o amor um pelo outro são evidentes nos mais pequenos detalhes. Charles tinha o espírito aventureiro dos pioneiros, e ao longo da sua vida fez a sua família mudar de casa quatro vezes. Não foram mudanças de casa como as nossas hoje, claro! A primeira foi para território índio, a segunda foi de regresso a "território branco" porque o perigo não os deixava continuar. Em cada uma destas mudanças, a decisão foi sempre imediata, tomada sob grande tensão à última hora. A horta começava a dar os primeiros frutos, o poço tinha acabado de ser aberto, a casa estava pronta, com madeira a cheirar a fresco, as meninas começavam a conhecer a grande pradaria e a habituar-se ao "grande silêncio". Mas os soldados americanos estavam em guerra com os índios. "Vamos embora esta noite", disse Charles. "Hoje? Amanhã íamos começar a colher o trigo... Eu já tinha falado às miúdas nas refeições saborosas que íamos ter... A horta está pronta... Vamos perder um ano inteiro de trabalho... Hoje?" "Sim, Caroline, hoje. Prepara tudo que vamos embora." E a resposta de Caroline era invariavelmente: "Yes, Charles". Não se tratava de uma cedência amuada, mas de uma aceitação plena e alegre da vontade do outro: "Os coelhos vão fazer uma festa quando descobrirem a nossa horta", rematou ela divertida, lançando um último olhar à terra que abandonava.
O "Yes, Charles" de Caroline ficou na nossa história de casal como uma brincadeira e uma forma de rematarmos os nossos conflitos conjugais. Naturalmente que, neste início de século XXI, o "Yes Charles" é também "Yes Caroline". Mas o Niall e eu ainda não encontrámos forma melhor de terminarmos os nossos desentendimentos. Quando a discussão começa a aquecer, o tom de voz a elevar-se, o rosto a corar, eu respiro fundo e digo:
- Yes, Charles!
Ou então é o Niall o primeiro a ceder, e com um piscar de olhos responde-me:
- Yes, Caroline!
Lembrei-me de escrever sobre esta história anteontem à hora de jantar, depois de mais um "Yes Charles" dito ainda com os dentes cerrados, mas logo seguido de uma gargalhada. Porque assim que cedemos à vontade um do outro nos nossos pequenos conflitos, a cumplicidade regressa.
S. Paulo traduz este "Yes Charles" num texto lindíssimo, onde submissão, obediência, humildade, serviço e entrega são tudo sinónimos do amor maior, o amor com que Jesus nos amou - e é naturalmente no quadro de um grande amor que este texto deve ser lido:
"Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres casadas sejam submissas aos maridos como ao Senhor (...) Maridos, amai as vossas esposas como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela..." (Ef 5, 21-33)
O amor implica cedência de ambas as partes. Ninguém pode amar e ao mesmo tempo fazer sempre a sua vontade! A teimosia constante ou unilateral gera sempre a discórdia. É preciso "deitar aos coelhos" muitos sonhos e fazê-lo com alegria! A paz conjugal depende de muitos "Yes Charles" e "Yes Caroline" ditos talvez de dentes cerrados, mas transformados de imediato em cumplicidade amorosa...
(No retiro também falamos de amor... Inscrevam-se! Na coluna lateral deste blogue têm como o fazer!)
O Niall e eu namorámos por telefone durante dois longos anos, depois de nos conhecermos e antes dele vir definitivamente viver para Portugal. Talvez nem todos os que lêem este blogue tenham noção do que significava namorar por telefone há vinte anos atrás! Na era "pré-telemóvel" e numa situação de "namoro internacional" como a nossa, ambos a viver fora de casa como estudantes universitários, precisávamos de coleccionar muitas moedas e de nos fecharmos naquelas casinhas simpáticas chamadas "cabines telefónicas". Depois falávamos o mais depressa que conseguíamos até a última moeda nos cortar a palavra a meio. Era, no mínimo, um bocadinho stressante...
Hoje, e porque trabalhamos a uma distância de trinta quilómetros um do outro, continuamos a namorar ao telefone, mas temos todas as vantagens da era moderna, com os seus sofisticados meios de comunicação. É, na verdade, raro o dia em que não conversamos à hora do almoço.
Às vezes, na primavera e no outono, quando os dias estão muito azuis, o Niall pede-me que adivinhe de onde está a falar. Então afasta o telemóvel da sua cara, e eu consigo escutar o som cavo do mar e do vento.
- Estás na praia! E deves estar a comer aquelas maravilhosas sandes de bife panado que fizeste esta manhã!
- Adivinhaste! Estou a almoçar na praia, e nem imaginas as conchas que por aqui há!
Ao fim da tarde, quando chega a casa, traz-me uma prova física da sua estadia na praia: uma concha, um búzio, uma pena de gaivota.
Outras vezes, sou eu que lhe faço inveja:
- Estou sentada no nosso jardim, com um gato ao colo, a olhar para as galinhas a esgravatar... Tenho meia hora ainda antes da próxima aula!
Noutros dias, o nosso telefonema é um pedido de perdão:
- Desculpa esta manhã ter-te falado tão mal. Os miúdos não se despachavam e eu estava tão atrasado!
- Desculpa tu. Eu é que estava nervosa. Vamos ser amigos de novo?
- Boa ideia! E tenho uma ideia ainda melhor: fazemos as pazes logo à noite, quando os miúdos estiverem a dormir!
E assim, à distância de um telefonema, sem interrupções de crianças, namoramos um pouco à hora de almoço, para nos recordarmos do que é realmente importante na vida. Mesmo que o trabalho esteja a correr mal, os filhos estejam particularmente difíceis, a casa esteja um caos e o mundo esteja ainda pior, eu sei que, à noite, vou poder deitar-me nos braços do Niall e recuperar o dom primeiro do nosso amor, aquele amor que prometemos um ao outro há dezoito anos atrás e que, nesse mesmo abraço conjugal, elevámos à dignidade de sacramento, sinal da presença amorosa de Deus entre nós.
"Por isso deixará o homem o pai e a mãe e se unirá à sua mulher e se tornarão uma só carne." (Gen 2, 24)
Estas últimas semanas têm sido muito cansativas, cheias de reuniões de avaliação, relatórios, acções de formação e milhares de papéis. O Niall também tem tido muito que fazer aos serões, diante do computador, pelo que o nosso tempo de casal tem sido muito limitado! Costumamos medir esta falha de tempo pela quantidade de gargalhadas que damos em conjunto. Ninguém me faz rir como o Niall, e se um dia nos deitamos sem nos rirmos com gosto, nota-se logo a diferença!
O nosso "tempo de casal" não precisa de ser longo. Às vezes são quinze minutos ao serão, depois de todos já estarem a dormir; outras, são quinze minutos de manhã, antes de todos acordarem. O importante é rirmo-nos juntos, brincarmos um com o outro, abraçarmo-nos, aprendermos a não levar muito a sério os conflitos que vão surgindo entre nós. Mas não podemos viver sem este tempo!
Nestes dois últimos serões, e para compensar a falta de gargalhadas dos últimos dias, decidimos fazer uma pequena caminhada ao serão. Quanto já todos os pequeninos dormem, deixamos o Francisco e a Clarinha a ler na sala e passeamos nas ruas à frente e atrás da nossa casa, suficientemente perto para o Francisco nos chamar se for preciso. Como não nos podemos afastar, damos várias voltas à casa antes de regressar.
Que noites tão bonitas! Ouvem-se as cigarras e as rãs a coaxar no riacho, as estrelas brilham no céu, e por todo o lado esvoaçam pirilampos. São milhares de luzinhas a piscar à nossa volta! Nunca me canso de contemplar a criatividade de Deus, que faz o dia e a noite e que cuida de cada insecto com amor. De mãos dadas, falamos dos filhos, falamos de Deus, falamos do nosso dia e dos problemas e alegrias que tivémos, falamos dos sonhos que temos e falamos das Famílias de Caná. De mãos dadas, rimos e abraçamo-nos. Parecemos dois namorados!
São só quinze minutos...
- Já? - Pergunta-nos o Francisco quando nos vê entrar em casa. E depois, com o seu sorriso divertido e levemente irónico - Mãe, deves estar muito cansada! Foi uma caminhada enorme!
Quem sorri divertida sou eu. Um dia ele irá compreender...
(a lua no nosso jardim...)
Quando Deus criou Adão e Eva, também gostava de os acompanhar nos seus passeios. Segundo consta, Adão, Eva e Deus costumavam "passear no jardim pela brisa da tarde" (Gn 3, 8)...
Nos primeiros dias depois das férias escolares, passo quase todo o tempo "livre" que tenho a arrumar a desarrumação que eles causaram cá em casa. A esta tarefa já por si bastante aborrecida, junta-se a necessidade de trocar a roupa de inverno pela roupa de verão, se bem que este ano ainda não seja uma tarefa tão urgente quanto desejável. Foi no meio desta minha azáfama que o Niall e eu nos cruzámos no corredor, eu com os braços cheios de roupa, ele com os braços cheios de brinquedos, e ficámos alguns minutos a conversar. Ter seis filhos tem-nos ensinado muita coisa, e uma das mais importantes é a aproveitar qualquer meio minuto para conversar. É que a soma de todos estes meios minutos traduz-se numa intimidade cada vez mais profunda entre nós, e naturalmente, na maioria dos tópicos destes posts. Sim, embora seja eu a "escritora", a reflexão é sempre conjunta e feita aos bocadinhos soltos durante o dia!
Voltemos então à nossa conversa:
- Devias ter visto a fotografia do interior de uma casa que encontrei num blog! Tudo tão arrumado, tudo tão moderno! E eu aqui, com os bolsos cheios de lixo...
O Niall riu-se:
- Ai sim? E tu devias ter ouvido um grupo de pessoas que encontrei, a falar das noites fabulosas que passaram a dançar durante as férias!
Rimo-nos juntos. À noite, depois de todos se deitarem, continuámos a conversar:
- Sabes, um dos problemas da nossa sociedade é a crença de que, para sermos modernos e felizes, temos de ser pais e mães bem vestidos, com casas de capa de revista, com vida social digna dos VIP, e com uma profissão de sucesso. Quanta frustração as revistas e os programas de televisão criam nas pessoas!
- Uma das grandes maravilhas de se ser cristão é aprendermos a valorizar o que realmente importa - continuei. - No limiar da vida, seremos julgados pelo amor.
- Claro! Deus não vai perguntar: "De que tamanho era a tua casa?" Mas sim: "Quantos acolheste lá dentro?"
- Nem vai perguntar: "Realizaste-te? Tiveste sucesso? Tornaste-te famoso?" Mas antes: "Aprendeste a esquecer os teus projectos pessoais para valorizar os da tua mulher, do teu marido, dos teus filhos?"
- Deus não perguntará: "Compraste roupas bonitas e caras? Andaste sempre bem vestido? Perdeste tempo com o supérfluo, a televisão, a moda, as compras, o mundo?" Mas antes: "Ofereceste-Me o teu tempo servindo os outros?"
- Deus não perguntará: "Descansaste muito nas férias?" Mas perguntará de certeza: "Encontraste tempo para Mim nas férias?"
- Tudo aquilo que o mundo valoriza, não tem valor nenhum para Deus... Tudo aquilo que para nós parece importante - títulos académicos, lugares sociais, bens e aparências - não valem absolutamente nada na eternidade! Diz o Senhor:
"Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, os vossos caminhos não são os meus caminhos - oráculo do Senhor! Tanto quanto os céus estão acima da terra, assim os meus caminhos são mais altos que os vossos, e os meus pensamentos, mais altos que os vossos pensamentos." (Is 55, 6.8-9)
- Sim, mas o mais giro é que, com a prática, começamos a encontrar verdadeiro prazer nos caminhos de Deus, e deixamos de achar graça áquilo que antes valorizávamos tanto!
- Deus quer que amemos a vida de verdade e tenhamos gosto nela. Por isso, quando O procuramos a sério, Ele ajuda-nos a desejar o que nos quer dar.
- E faz-nos perder o interesse no que não serve para a nossa santificação... É por isso que os santos são sempre tão felizes!
- Lembras-te de como tu gostavas de ver telenovelas?
- Lembro. E hoje, seria incapaz de as ver! Ninguém mo proíbe, mas deixei de sentir prazer nisso. E descobri que me dá imenso prazer estar simplesmente aqui, agora, a conversar contigo; ou lá fora a empurrar a Sara no baloiço, por muito monótono que isso seja! Acho que é isto a felicidade.
- Pois é. Já reparaste que somos mais felizes quanto menos procuramos a nossa própria felicidade? Quando procuramos simplesmente o amor? Afinal, a grande mensagem da Páscoa é esta:
"Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de Mim, há-de salvá-la." (Mt 10, 39)
Ficámos em silêncio um bom bocado, já deitados. No silêncio, saboreámos este dom gratuito do amor de Deus, a felicidade que Ele dá de graça a quem Lhe entrega a vida...
(... e na nossa macieira, as flores continuam a brotar...)
Num destes dias, uma jovem mãe abordou o Niall na universidade:
- Ouvi dizer que tem muitos filhos...
- Não são muitos, são seis - respondeu ele.
- Sim, muitos - continuou ela - Queria fazer-lhe uma pergunta: como faz para os pôr a dormir à noite?
O Niall deu uma gargalhada. A pergunta já é habitual! Depois respondeu:
- É bastante simples. Quando são horas de ir para a cama, eles vão! E mais não sei...
Ninguém nasce a saber ser mãe e pai. Como tudo na vida, também a maternidade e a paternidade se aprendem. E a melhor escola são os filhos, claro! O nosso primeiro filho pôs-nos a vida "de pernas para o ar". Às dez da noite ainda tinhamos a cozinha por arrumar, e às vezes era meia-noite e o bebé estava mais acordado do que nós. Foram precisos vários filhos para aprendermos algumas técnicas básicas de organização familiar. Agora, ao fim de sete filhos, temos a cozinha arrumada às oito e os três mais novos deitados antes das oito e meia. Com um só filho, nunca teria tempo para escrever este blogue!
Os nossos filhos mais novos são tão felizes como os mais velhos; mas nós somos muito mais felizes agora do que então. E porquê? Porque as rotinas das crianças oferecem-nos uma margem fantástica para o nosso tempo de casal.
Tempo de casal. Tempo em que estamos apenas os dois, para nos lembrarmos de que, antes de sermos pais, somos marido e mulher. Tempo para conversar, para rir à gargalhada, para ler um livro ou ver um filme juntos. Tempo para rezar em casal. Tempo para falar da educação dos filhos e dos nossos projectos e sonhos pessoais. Tempo para desabafarmos sobre os problemas do trabalho ou outros. Tempo para namorar.
Há dias em que a rotina dos banhos, jantar e deitar é particularmente difícil, condimentada com muitas birras, lutas entre irmãos e choros. Nesses dias, eu e o Niall trocamos um olhar cúmplice enquanto deitamos também uma olhada ao relógio da parede. Depois sorrimos um para o outro:
- Já só falta meia hora - diz-me ele. A luz que brilha ao fundo do túnel dá-nos um reforço de paciência, e os gestos rotineiros tornam-se mais fáceis.
Estou convencida de que uma das razões para tantos divórcios hoje em dia é a falta deste tempo conjugal. Nenhuma relação sobrevive sem ele! Para nós, o tempo de casal é diário, embora não tenha todos os dias a qualidade desejada. Penso que, no mínimo, todos os casais precisam e merecem de um serão por semana sem crianças e sem assuntos de trabalho. Não é preciso sair de casa nem fazer as crianças sair de casa: basta organizar um pouco a rotina diária! Claro que, de vez em quando, é preciso um tempo mais alargado, talvez até um fim-de-semana a dois. Os avós são óptimos aliados para ficarem a tomar conta das crianças!
Há sete anos que o Niall e eu não passávamos uma noite sem filhos. Não se podem mandar seis filhos para casa da avó todos ao mesmo tempo, não é verdade? Como a avó só costuma receber dois de cada vez, sempre nos sobram quatro. Ontem, finalmente, aconteceu: aproveitámos um retiro internacional e ecuménico em Fátima, e tivémos dois dias de sonho na terra de Nossa Senhora. Valeu bem a pena! Foi um encontro intenso com o Senhor e sua mãe, com a Igreja, e um com o outro. Os nossos filhos não podiam estar mais felizes, bem tratados pela avó, que se adaptou rapidamente ao barulho, à brincadeira e até à bicharada. E agora estamos de regresso para junto de quem mais amamos no mundo...