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Tempo ganho e tempo desperdiçado

por Teresa Power, em 29.05.15

- António, hoje vou buscar-te à escola antes do almoço porque temos de ir a Coimbra.

- Ao dentista?

- Sim, ao dentista.

O António tem um problema de ortodôncia que está a ser corrigido no Hospital de Coimbra. Assim, de mês a mês, o Niall ou eu levamo-lo à consulta.

- Que bom! Gosto tanto de ir ao dentista de Coimbra!

- E porquê? - Quis eu saber. Pensei que fosse pela simpatia da médica, ou pela ausência de qualquer dor nos tratamentos. Tudo isso ajuda, claro, mas a razão é outra:

- Por causa da viagem!

Fui buscá-lo às onze horas. O António entrou no carro, e de imediato sugeriu:

- Podemos começar pelo jogo das cores.

- Que jogo é esse?

- Eu jogo com o papá e ganho sempre! É assim: tu contas os carros de uma cor, eu conto de outra, e vemos quem ganha.

-Ah, e que cores é que o papá costuma escolher?

- Da última vez, ele escolheu cor-de-rosa, e da outra vez foi cor-de-laranja. Eu escolhi os carros azuis e ganhei!

- Pois, estou a ver... Então hoje eu fico com os verdes, e tu com os cinzentos, a ver quem ganha!

Dez minutos passados, e depois de uma estrondosa vitória para o António, ele voltou a sugerir:

- Agora podes contar uma história da Bíblia. Eu gostava que contasses aquela do homem que mergulhou sete vezes no rio cheio de lama. Pode ser?

Contei-lhe a história do Sírio Naamã. Ele pediu outra, e contei-lhe a do paralítico que Jesus curou.

- Estás a ficar cansada, mamã?

Estava mesmo. O António compreendera, e por isso continuou, antes que eu lhe respondesse:

- Podes ficar calada um bocadinho, enquanto eu fico a pensar nas histórias que contaste.

Assim fizemos. Cinco minutos depois desta meditação silenciosa, voltou a sugerir:

- Agora, que já descansaste, podemos fazer outro jogo. O jogo do "Adivinha o que estou a ver!"

- OK, eu começo: estou a ver uma coisa grande, verde e a abanar...

- São árvores!

- Exatamente. Agora és tu!

- Estou a ver uma coisa branca, fofa e alta...

- Núvens!

Chegámos a Coimbra. Depois de estacionar e de entrar no recinto, fomos informados que teríamos de esperar cerca de meia hora.

- Que bom! - Atalhou o António - Ainda tens tempo de me ler as histórias que trouxemos.

Sentei-o ao meu colo e li-lhe duas histórias da Bruxa Mimi, que o António adora. Depois da consulta, no carro de regresso ao infantário, o António fez uma curta sesta, e eu aproveitei para rezar o terço. Á noite, durante a oração familiar, o António agradeceu:

- Obrigado, Jesus, porque hoje fui a Coimbra, ouvi quatro histórias e joguei dois jogos no carro com a mamã!

antónio árvore 1.JPG

Na mesma sala de espera onde o António e eu rimos à gargalhada com as aventuras da Bruxa Mimi, estava outra criança pequena com a mãe. Mãe e filho permaneceram num silêncio absoluto durante todo o tempo em que esperámos. Ambos tinham os olhos fixos nos ecrãs dos respetivos telemóveis, movendo os dedos sobre as teclas à velocidade da luz.

Não conheço aquela família, e Deus me livre de fazer qualquer tipo de julgamentos sobre eles em particular. Mas a verdade é que eu já assisti a inúmeras cenas parecidas, nas escolas como nos hospitais, nos consultórios médicos como nos restaurantes. São cada vez mais frequentes as famílias onde cada um vive no seu pequeno mundo, sem pontes nem janelas. Às vezes, as pessoas comentam:

- Tiveste muita sorte com os filhos!

E eu costumo responder:

- Pois é, mas olha que a sorte dá muito trabalho!

Fazer uma viagem de carro a brincar com uma criança ou ler-lhe histórias na sala de espera de um consultório é bastante mais cansativo do que oferecer-lhe um telemóvel para que se entretenha. A tentação do mais fácil é forte, mas o que está em jogo é muito mais poderoso... Diz-nos S. Paulo:

 

"Vede bem como procedeis: não como insensatos, mas como sensatos, aproveitando o tempo, pois os dias são maus."

(Ef 5, 15-16)

 

Há algo que, depois desta vida, nunca mais terei de volta: o tempo. Só tenho uma vida para aproveitar ou desperdiçar tempo. Talvez nos queixemos de que "os dias são maus" e que não temos tempo para o que é importante. Talvez não tenhamos um dia inteiro, nem umas férias dignas desse nome, nem fins-de-semana em casa. Mas não teremos cinco minutos disponíveis, no carro ou em casa, durante o jantar ou durante os banhos, num consultório ou na praia, para contar uma história, fazer uma oração familiar, fazer uma jogo ou escutar uma confidência? Cinco minutos roubados ao nosso direito ao descanso ou aos nossos outros mil afazeres? Cinco minutos cheios de esforço? Esses cinco minutos não voltarão... Mas se os empregarmos com sensatez, como sugere S. Paulo, ser-nos-ão devolvidos ainda nesta vida, em cada um dos nossos filhos, e na eternidade, em felicidade sem fim...

 

 

 

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publicado às 06:20


7 comentários

De Olívia a 29.05.2015 às 08:50

Quando penso nestas coisas lembro-me sempre da letra da música dos Xutos, que é da década de 80: «Putos que crescem sem se ver
Basta po-los em frente à televisão...»

Hoje temos muito mais coisas para lhes colocar à frente e num dia de cansaço é preciso muita força de vontade para não embarcar na maneira mais fácil de os entreter... oh se é!

bjs

De Maria de Jesus a 29.05.2015 às 09:56

Bom dia,
Ao ler o vosso post, parecia que o vosso carro era o meu. Sempre fiz esses jogos no carro com as minhas filhas. Também costumamos fazer essas viagens para o hospital de Coimbra, no nosso caso para a cardiologia, mas a Inês também não se importa nem sequer de esperar, e por vezes chegamos a estar mais de 1 ou 2 horas à espera, mas ficamos a brincar com legos, a fazer desenhos ou a ler historias. Eu normalmente para além de brincar com a minha filha, tenho sempre mais 3 ou 4 crianças para tomar conta que se juntam a nós enquanto as respectivas mães ficam a ver televisão. Não critico ninguém e para mim isso também não é um sacrifício faço-o com gosto, mas é como diz a Teresa: A "sorte dá muito trabalho, mas também muitas recompensas.

Beijinhos para vocês todos.

De Teresa Alexandre a 29.05.2015 às 10:47

Ai Teresa, ainda bem que, como diziam os Xutos "nao, nao sou o único"!

Sobre este tema sinto-me como Dom Quixote a lutar contra os moínhos de vento, ou como the last of the Mohicans, mas nao me importo.

Tantas, mas tantas vezes, vejo estas situacoes! Em parques infantis, em restaurantes, na rua, em casa, no carro, nos transportes públicos, no aviao....

"- Pois é, mas olha que a sorte dá muito trabalho!"
"Há algo que, depois desta vida, nunca mais terei de volta: o tempo. Só tenho uma vida para aproveitar ou desperdiçar tempo."
"Esses cinco minutos não voltarão..."

Faco, mais um vez, minhas as tuas palavras. Obrigada!

De Teresa Power a 29.05.2015 às 11:05

Obrigada pelo teu comentário, Teresa! Não sabia que andavas por aqui :) Vamos continuar nesta luta, pelo bem das gerações futuras! Bjs grandes!

De Aida a 29.05.2015 às 10:51

Olá,
penso exactamente o mesmo que a Teresa. Trabalho num hospital e passo todos os dias (mais do que uma vez) pela sala de espera. Lá vejo pessoas de todas as cores, classes, religiões, culturas. Num dos pisos, as pessoas são na maioria de classe alta e o tempo de espera de espera é empregue em revistas, televisão, tablets ou outras variantes e quase sempre em silencio - como deve ser num hospital.
Assisti, uma única vez, a uma cena familiar deliciosa: uma avó cigana rodeada de netos a contar uma história sem livro nenhum, fazia variantes na voz para as personagens e batia com as mãos no móvel para "bater á porta". Todos os netos escutavam deliciados, em silêncio e de boca entreaberta a história.
Nesse dia, tive uma lição de humildade! Criticamos tantas vezes esta etnia por motivos vários... no que respeita à familia temos uma montanha de coisas a aprender com eles, ou melhor, a recordar com eles, pois foram coisas que tivemos com os nossos avós/bisavós e que por motivos estranhos esquecemos com o passar das gerações.
beijinhos

De Teresa Power a 29.05.2015 às 11:06

Eu também já estive na companhia de uma avó cigana na sala de espera do pediátrico, e a cena foi semelhante. Tanto a aprender! E tanto a educar, nestas gerações mais novas! Obrigada pelo comentário! Bjs

De Anónimo a 29.05.2015 às 16:23

E a recompensa desses 5 minutos ou 5 horas é muito grande! O trabalho quando é com amor e por vezes com sacrifício traz consigo tantas recompensas! Temos de dar tempo a quem amamos, caso contrário, podemos descobrir que é tarde demais. E ao dar tempo, o amor vem e inunda-nos e já não são suficientes 5 minutos...

Grande abraço Teresa!

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