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Tempos livres V - Competição

por Teresa Power, em 29.01.16

- Mãe, eu não quero mais fazer ginástica - A confissão da Clarinha apanhou-me totalmente desprevenida. Estávamos a falar de que, brevemente, teríamos de investir algum dinheiro num fato de ginástica, pois ela não podia continuar eternamente a competir com fatos emprestados. E estávamos a pensar num como prenda de Natal.

- Mas, Clarinha, o que aconteceu? Não é o que tu mais gostas de fazer?

A Clarinha desatou a soluçar. Eu sabia que ela tinha tido alguma dificuldade em se adaptar à nova treinadora principal (que orientava os treinos principais), mais fria e severa que a professora dos treinos normais, mas estava longe de imaginar tal coisa. Havia, claro, alguns sinais de mal-estar, como uma irritação excessiva nos dias anteriores às provas. E havia alguns comentários desta treinadora que me deixavam um nó no estômago, como por exemplo este: "As meninas que querem ginástica a sério têm de esquecer os tempos perdidos com missas, catequeses, coros e outras atividades", comentário que mereceu da Clarinha um encolher de ombros e uma gargalhada.

Quando, por fim, conseguiu falar, desabafou:

- Mãe, eu adoro ginástica, quer dizer, eu adorava ginástica, mas... Eu detesto competições! Eu não quero ir a mais nenhuma competição.

- E pode-se saber porquê?

- Passo o dia sozinha. Em grande solidão.

- Sozinha? Mas tu passas o dia inteiro rodeada de meninas, a treinar!

- Sim, e esse é que é o problema: estamos todas sozinhas, mãe! Cada qual está a treinar o seu esquema, e ninguém fala com ninguém... Eu bem tento sorrir, eu bem tento falar, perguntar o nome, saber o que mais gostam de fazer, saber a que escola vão ou qual a música que gostam de ouvir. Mas ninguém me devolve o sorriso... Ninguém fala comigo! É horrível!

E a Clarinha soluçou ainda mais. Abracei-a. Começava a entender.

- Clarinha, queres dizer que nas competições as meninas só estão a pensar em ganhar?

- Sim, mãe. Quando cheguei à última competição, a professora apresentou-me a uma menina da sua outra escola. Sabes como me apresentou? Não foi: "Olha, esta é a Clarinha". Foi: "Olha, chegou a tua competição".

- Que queria ela dizer com isso?

- Que eu e ela estávamos a lutar pelo mesmo lugar, claro.

- Mas eu pensei que as competições eram para cada uma se superar a si mesma, não para cada uma superar a outra.

- Também eu... E sabes o que me disse mais, quando acabei a minha prova?

- Sei, tu disseste-me na altura. Ela disse: "Tenho orgulho em ti!"

- Não, mãe, não memorizaste as suas palavras exatas, mas eu memorizei. Ela disse: "Tenho orgulho em te mostrar." É bem diferente!

Não era só o ambiente das competições que magoava a Clarinha. Era também o tempo dispendido com os treinos, e que a professora aumentava progressivamente. Mais horas de treino significavam, para a Clarinha, menos horas a fazer outras coisas também interessantes, como culinária, costura, guitarra, bandolim, brincadeiras com os irmãos, jantares em família. E a Clarinha não tinha a certeza de que o sacrifício valesse mesmo a pena.

A conversa prolongou-se por vários dias e vários treinos. Pedi à Clarinha que não desistisse sem ter a certeza de que o queria fazer. Assegurei-a do que ela já sabia: de que eu não tinha para ela qualquer sonho relacionado com a ginástica, que nunca me passara pela cabeça fazer ginástica ou ter uma filha ginasta, e portanto, ela não me desiludiria desistindo, antes simplificaria a vida de todos lá em casa. E dei-lhe espaço para chorar, pensar, decidir. Assim, durante as férias do Natal, a Clarinha ainda fez um estágio de um dia inteiro e uma competição. A última.

20151230_171333.jpg

Finalmente, conversámos com a professora que a acompanhava nos treinos semanais, que foi extremamente compreensiva e ficou tão surpreendida quanto eu. Com muita elegância, procurou encorajar a Clarinha a continuar. Em vão.

- Clarinha, recebi um mail da tua professora, a dar-te os parabéns - Disse-lhe, quando uma tarde a fui buscar ao colégio.

- Parabéns porquê?

- Porque já sairam os resultados da tua última prova... Ficaste em quarto lugar, com uma pontuação de... 9000 pontos! O primeiro lugar teve uma pontuação de 10 250 pontos. Não ficaste longe!

Silêncio. Depois, a Clarinha começou a chorar baixinho. Deixei-a chorar, sabendo que no seu interior as cambalhotas eram muitas.

- Clarinha, não estavas à espera de tanto, pois não?

- Não.

- Sabes que podias chegar a um primeiro lugar um dia, não sabes? Na segunda divisão, claro...

- Sei. A professora disse-me.

- E queres mesmo desistir?

- Não estou na ginástica por causa do pódio.

A decisão estava tomada.

- Clarinha, podemos dizer que foi um final feliz, então! Terminaste em beleza!

Um sorriso. Definitivo.

 

A história da Clarinha não é, claro, a história de todos os meninos que fazem desporto de competição. Não quero, com estes posts, generalizar, nem sobre atletas, nem sobre treinadores, nem sobre clubes. No entanto, nestes dois anos descobri muita coisa que antes desconhecia por completo. Descobri, por exemplo, que são muitas as crianças que detestam as competições e os treinos exagerados que as precedem; que são muitos os treinadores interessados nos atletas como fonte de promoção pessoal ou do clube, e não enquanto pessoas; que é muito difícil resistir às lisonjeiras palavras dos treinadores, convencendo-nos de que a competição é o melhor para os nossos filhos; que são muitos os pais "treinadores de bancada", decididos a fazer dos seus filhos campeões olímpicos - porque se eu me queixo de que a professora exigia demais da Clarinha, outros pais, e relativamente à mesma professora, queixam-se precisamente do contrário... Nestes dois anos, descobri que, como diz o Livro do Eclesiastes,

 

"vaidade das vaidades, tudo é vaidade" (Ecl 1, 2)

 

Penso nos pais que impõem aos filhos atividades desportivas, musicais ou outras, sem se darem conta do cansaço que eles têm receio de exteriorizar, por medo de serem uma desilusão; penso nos pais que projetam nos filhos a realização dos sonhos que não conseguiram realizar, ou pelo contrário, a continuação da educação que receberam em pequenos; penso nos pais que não permitem aos filhos desistir - e me aconselharam a não permitir à Clarinha desistir - porque a adrenalina é uma vitamina que faz crescer.

Penso em Maria de Nazaré, que não percebia as escolhas do seu Filho, mas as aceitava como fazendo parte do grandioso mistério da sua vida e tudo guardava no Coração.

Possamos nós também escutar o que os nossos filhos nos dizem com as suas atitudes, os seus silêncios, as suas lágrimas, os seus risos... Só quando se sentirem escutados, sem julgamentos; só quando sentirem que não nos vão desiludir com as suas escolhas, eles irão abrir-nos o seu mundo interior para que entremos, pé ante pé, descalçando as sandálias porque o terreno é sagrado.

E entretanto, que aconteceu à Clarinha? Não, não ficou sentada no sofá... Olha quem! O final da história amanhã, se Deus quiser :)

DSC01872.JPG

 

 

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publicado às 06:00


9 comentários

De Anónimo a 29.01.2016 às 12:05

A competição é o que é e não é para todos. Temos ainda que compreender que os treinadores jogam também a sua sobrevivência através dos seus atletas. O mundo é assim e temos mesmo que viver com isso. Louvo quem não se deixa deslumbrar e assume que não é o caminho que quer trilhar. Aconteceu o mesmo cá em casa, a minha filha após 8 anos de ballet numa escola, quando a professora lhes começou a dizer que tinham que controlar o peso (em adolescentes magras), quando começou a ver que o que lhe tinha dado tanto prazer era agora fonte de sofrimento, disse chega, basta. Evidentemente que lhe custou muito a decisão. Mas é muito comum, tenho entre amigos quem tenha chegado muito alto, participações em campeonatos europeus e mundiais, e um dia tenha dito, já não é isto que eu quero. Mas também conheço uma menina de 11 anos, a voar mesmo muito alto na dança (vai participar numa competição em Nova Iorque, ficou em 3º lugar numa competição europeia), dança todos os dias muitas horas e é uma criança como as outras, equilibrada e feliz.
Muitas vezes os pais não ajudam nada a diminuir o espírito competitivo pouco saudável. O meu filho mais novo joga rugby na académica, e é um ambiente fantástico o das competições de rugby a este nível, pelo desportivismos, espírito de equipa e convivência saudável. Mas se passarmos para o futebol assiste-se ao oposto com os pais (haverá honrosas excepções) a terem um papel muito negativo.
Finalmente, ter uma criança especialmente dotada é uma bênção. Chegar longe não é uma maldição, pelo contrário. E é possível fazê-lo de uma forma saudável.

Aconselho este vídeo de um dos maiores bailarinos mundiais:
Daniil Simkin: A Healthy Perspective on Being a Dancer
https://www.youtube.com/watch?v=CYF9ldvmnMs

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